De novo e de novo, até que surja o novo

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POR FERNANDA ZACHAREWICZ*

Ano passado, pediram que eu escrevesse sobre prevenção ao suicídio. Agora chegou setembro, e desta vez fui eu quem decidiu escrever. O tema é o mesmo, mas há algo novo que surge a cada vez que nos debruçamos sobre ele.

Há dois anos, recebi um manual norte-americano de cuidados de saúde mental para adultos que cuidam de jovens. Avessa a manuais, revirei os olhos, mas abri a publicação, coloridíssima, em papel couche, com todo o jeito de livro didático de curso de inglês. Tenho um vício, caiu na minha mão, vai ser lido. Entre as diversas sugestões de passos a seguir, uma ideia se repetia ao longo dos capítulos e me capturou: “Escute sem julgar”.

Simples, né? Tão simples que é complicadíssimo. Já começa com a exigência de duas ações: ouvir e não julgar. Detenhamo-nos, em um primeiro momento, no primeiro verbo, conjugado no imperativo: “Escute”. Somos capazes de ouvir o outro? Esses dias assisti ao filme O primeiro mentiroso, disponível na principal plataforma de streaming. A história acontece em um mundo em que não se conhecia a mentira, todos falavam a verdade. As cenas que interessam neste artigo são as do encontro, no elevador, do personagem principal com seu vizinho. Mais de uma vez ele responde à pergunta banal “Como vai?” relatando sua tentativa de suicídio. O elevador chega ao andar específico e cada um segue seu caminho.

Escutar o sofrimento humano implica um segundo compromisso: encaminhar o que foi escutado. Isso difere da segunda ação proposta no manual, “sem julgar”? Não, o adequado encaminhamento da escuta do sofrimento humano só se dá se os julgamentos daquele que ouve forem suspensos.

Suspender o julgamento vai muito além do despir-se de preconceitos. O sofrimento humano não foi inventado ontem, ele acompanha a humanidade desde seu início. São inúmeras as histórias de amores não correspondidos, de existências solitárias, de falências, de culpa, de diagnósticos médicos terríveis, de situações de abuso e violência as mais diversas. Suspender o julgamento inicia-se por ser capaz de escutar a intensidade do afeto daquele que fala, ainda que por meio de profundo silêncio, e legitimar essa dor.

A história que escutamos não é a repetição do drama humano. Ainda que o enredo se repita, é única a dor que suspende a existência, localizando essa última em um umbral, na suspensão entre a possibilidade de vida e de seu término. Aqui é o ponto em que aquele que escuta faz a aposta.

A aposta na fala. Fale-me mais sobre isso, fale mais sobre o que te faz sofrer, fale-me mil vezes, a cada vez fale-me da mesma coisa, até que nos deslizes das repetições possamos perceber algo novo que emerge do discurso, que te afeta e te faz mudar de posição subjetiva. Na própria disposição em escutar a repetição, está o não julgar. O tempo empregado no processo é um tempo sem ponteiros, no qual as horas podem passar num instante ou os segundos se alongarem interminavelmente.

É um tempo sem conta, é um tempo fora do tempo pelo qual todos se pautam, é um tempo que não se julga, não se conta em minutos, é um tempo lógico. Temos, assim, os dois elementos que compõem o que podemos oferecer àquele que sofre: a escuta e o tempo nos quais qualquer juízo está suspenso. É somente desse processo que poderá advir o novo.

Que em setembro de 2021 eu possa voltar a repetir esse tema, para que nunca esqueçamos a importância da escuta e da acolhida do sofrimento humano, até que, para cada um que sofre, surja o novo.

*FERNANDA ZACHAREWICZ é Psicanalista, Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e editora da Aller Editora

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