POR LENAH OSWALDO CRUZ*
Nas décadas de 1940 e 50, a sociedade moralista condenava qualquer relacionamento que não seguisse os padrões familiares vigentes. Era também particularmente cruel com as mulheres desquitadas, estigmatizando-as por ter seu casamento desfeito. Nesse contexto social, a mulher tinha o dedo de todos apontados para ela com desdém. Ela era a “responsável” pelo fracasso de seu casamento, acusada por todos e isolada pelos casais constituídos. A tensão social era forte, mas o assunto velado. No meu caso pessoal, filha de pais desquitados, havia um agravante muito maior…
Desde os seis anos de idade me senti gauche, como o anjo torto do verso de Carlos Drummond de Andrade. Foi quando minha família se mudou de Ipanema para um apartamento no novo bairro de Laranjeiras. No dia seguinte à mudança, enquanto meus pais arrumavam as coisas, pedi licença para descer e brincar de roda com as crianças que vira pela janela. Meu coração batia forte ao me sentir, pela primeira vez, completamente só naquele elevador de grade de metal dourado. Após deixar que me vissem, cheguei devagar junto ao grupo de meninas e, quando quis dar a mão a uma delas, a roda parou, e ouvi:
– Você não pode! Não brinco com você, porque é filha de padre! – Essas palavras incendiaram meu rosto…
Meu pai era padre beneditino, um intelectual, reconhecido e admirado pela sociedade e comunidade eclesiástica de São Paulo. Foi o primeiro diretor da recém fundada Faculdade Católica de Filosofia de São Bento, quando minha mãe, uma bela jovem da sociedade carioca, entrou para a faculdade como sua aluna. Era o ano de 1935 e a paixão os arrebatou.
No livro “A Voz do Tempo”, conto essa história que se tornou um escândalo na época, mas foi completamente abafado pelo teor inusitado e vergonhoso do fato. O casal e familiares tiveram de se mudar de São Paulo, pela perseguição e rejeição ostensiva de todos, e a vida tomou novos rumos que o destino traçou até a conflituosa separação deles. Eu e meu irmão, frutos desta paixão proibida, sentimos na pele os reflexos da hipocrisia social, sendo desprezados inclusive pelos próprios pais, que pareciam se arrepender das escolhas da vida.
Antes de morrer meu pai pediu-me que fosse a seu apartamento para procurar uma mala onde tinha guardado a batina branca e dourada, com a qual se sagrara sacerdote, porque queria ser enterrado com ela. “Estou casada com ele há 30 anos e nunca ouvi falar dessa mala”, disse minha madrasta. Encontrei três batinas, a dourada completamente destruída e, junto delas, um embrulho com os três cadernos de capa preta em que um dia meu pai deixara escrita a história de sua vida.
Alguns dias após sua morte, comecei a ler esse manuscrito, que revelou para mim todo um passado desde 1880, a partir de meus avós até o dramático desfecho do relacionamento de meus pais. Foi quando percebi que, por mais dolorosa que seja, essa era uma história que deveria ser contada. Mesclada à minha memória, tentei, como numa catarse, a reconstrução da nossa vida com a indignação do comportamento de meus pais – ambos cultos, brilhantes intelectuais e profissionais dedicados a seus ideais de educação –, pelo fato de rejeitarem a nós, meu irmão e eu, cada um à sua maneira. Mas aquele manuscrito o resgatou como indivíduo, por ser tudo que me restava do pai que eu tinha perdido em vida.
De um certo ponto de vista o leitor vê que, embora pareça uma saga de família ou a história de um escandaloso caso de amor, ou ainda uma memória pessoal, é, em essência, a história entre o desamparo e a resiliência de um coração humano.
*LENAH OSWALDO CRUZ é bibliotecária, empresária e especialista em turismo. Hoje, aos 83 anos, conta a história dos pais Dora e Luiz na autobiografia A Voz do Tempo.
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