Negra, escravizada, jovem, mãe de dois filhos e apartada do marido no interior do Piauí. Este é o perfil da primeira mulher a praticar advocacia no país, ainda no século 18, conforme oficializado em dezembro pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).Neste mês, o reconhecimento culminou com a instalação de um busto em homenagem a Esperança Garcia na sede nacional da OAB, em Brasília. O ato simbólico marcou a conclusão de décadas de resgate histórico, mas também resulta de uma luta política de advogados negros, destaca a jurista Vera Lúcia Araújo.
“Verifica-se um resgate histórico, mas esse processo se deve também a uma ação política da advocacia, de negras e negros, nesta situação especialmente, não é uma coisa que vem de uma hora para outra”, afirma a advogada, que é integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB nacional.
A expectativa é que a conquista simbólica, contudo, seja prenúncio de medidas mais efetivas para aumentar a presença de negros no mundo jurídico, diz Vera Lúcia. “Para nós, é extremamente estimulante e gratificante ver essa consagração. Agora, a gente não pode ficar só no simbólico, é preciso ter uma materialização dessa luta.”
Segundo a jurista, a OAB deveria garantir o cumprimento das cotas para a eleição de seus conselheiros, ou para a escolha dos diretores do Conselho Federal, que nunca foi presidido por uma pessoa negra. Em outro flanco, a OAB também poderia “usar do poder representativo da advocacia brasileira e se posicionar em defesa de um jurista negro na composição do Supremo Tribunal Federal”, diz a advogada.
PRIMEIRA PETIÇÃO
Ainda assim, a justificativa formal para o reconhecimento de Esperança Garcia derivou também de um árduo trabalho de recuperação histórica, que começou com a descoberta, em 1979, pelo antropólogo Luiz Mott, de uma carta escrita por ela em 6 de setembro de 1770, endereçada ao governador da capitania do Piauí.
No documento, Esperança rogava providências contra os abusos cometidos por seu administrador, o capitão de ordenança Antônio Vieira do Couto, que a submetia e a seus filhos pequenos a maus-tratos físicos, além de proibir os escravos da fazenda Poções de se confessar e batizar seus descendentes.
“Ciente do seu mundo e dos limites que sua condição de escrava podia propiciar, Esperança Garcia utilizou a estratégia dos conquistadores para defender os seus direitos, angariar vantagens e, com isso, (re)planejar seu destino perto dos seus filhos e do seu marido”, diz o Dossiê Esperança Garcia, produzido entre os anos de 2016 e 2018 por uma comissão de juristas e historiadores.
Aliado a outros registros da época, de pessoas que intercederam na causa pleiteada por Esperança, o documento foi reconhecido pela Seccional da OAB do Piauí como uma petição jurídica, por trazer todos os elementos necessários: endereçamento, identificação, narrativa dos fatos, fundamento no direito e pedido. Isso levou a escravizada a receber o título de primeira advogada do estado, em 2017.
Foram cinco anos de campanha até que o Conselho Federal da OAB aprovasse o reconhecimento do documento escrito em 1770 como uma petição, e de Esperança Garcia como primeira advogada do Brasil, em dezembro do ano passado. Antes, o posto era ocupado por Myrthe Gomes, que ingressou na advocacia mais de 100 anos depois, em 1899.